Nasci com quase 4,5kg e de parto normal. Já vim ao mundo grande e pesada, assim como foi a minha história com a obesidade. Um fardo difícil de entender e de carregar. Não à toa.
Quando tinha 15 dias de nascida, tive uma infecção urinária e, na época, no interior do Ceará, não haviam recursos médicos disponíveis e adaptados às crianças. Então, fui tirada do acalanto do seio materno, onde eu mamava e me nutria de amor e fui internada sozinha no hospital, só podendo receber visitas, sem acompanhante. Foi aí em que o grande gatilho disparou. Com dias de vida, diante as luzes brancas do teto (que aprendi a odiar até hoje) e de enfermeiros desconhecidos, encontrei na comida o acalanto que eu carecia.
Eram 1, 2 e, as vezes, 3 mamadeiras de uma só vez. De barriga cheia, eu conseguia me sentir bem e não chorar de solidão.
Quando cresci, a comida me acompanhou em todos os momentos. Nos aniversários eu não brincava direito. Ficava de olho nos docinhos, salgadinhos, lembrancinhas e no rei da noite: o bolo. Mas não bastava só comer muito lá. Já tinha todo o esquema de juntar pra trazer pra casa. E com o meu estoque, passava mais uns dias devorando tudo.
Tenho uma lembrança de abrir uma lata de leite condensado e fazer um prato cheio de brigadeiro. Eu comia em etapas. A primeira era quente mesmo – o que me rendia altas dores de barriga. A outra metade eu guardava no meu guarda roupa. Sim, no guarda roupa. Lá dentro. Ele era grande, daqueles embutidos na parede e me cabia sentada.
Lá era meu refúgio seguro. Ninguém me via comer e não tinha risco de alguém roubar meu doce (o que poderia ocorrer se o deixasse na geladeira). Nessa época, já havia aprendido a comer escondido.
Na escola, a hora do Recreio era pra comer. Se tivesse dinheiro eu ia pra cantina pedir o que desse pra pagar. Um pão quente, um picolé ou, nos dias mais ricos, hambúrguer com refrigerante. Ah, nesse dia me sentia uma rainha. Era o lanche mais top do colégio e me sentia poderosa quando comprava o kit desejado.
Nos outros dias eu levava a “merenda” de de casa. Geralmente sucos adoçados, biscoito recheado, cheetos, bolachas variadas. E, assim, por muitos anos, foi essa a minha rotina alimentar.
Aos 10 anos eu era uma criança obesa e grande. Já destoava do normal e já me sentia mal por isso. As roupas já não eram fáceis de achar e desde então, já usava as roupas da minha mãe ou as comprava na seção de adultos.
Por óbvio, não usava as roupas da moda e dos personagens infantis da época. Vestia o que dava em mim (acho que é por isso que até hoje sou tão alucinada pelo “vestir”. Amo roupas, moda e curto muito me arrumar. É que não fiz isso por muito tempo em minha vida.)
Como eu era “diferente”, nas festas de fim de ano e peças teatrais da escola, só me restavam os papéis coadjuvantes, ou, leia-se: invisíveis.
Eu era a árvore, o espantalho, a vovozinha. Nunca e jamais a chapeuzinho vermelho, a branca de neve ou a cinderela. Era muito gorda para isso. Tinha de me conformar.
Mesmo novinha, já ouvia cobranças do tipo: vai engordar, vai adoecer, vai vomitar. Mas essas aí eram fichinhas na frente das outras pérolas que a minha criança interior registrou: “Nunca vai namorar”, “vai ficar gorda e sozinha”… e por aí vai. As pessoas achavam que isso iria me ajudar a parar de comer. Mal sabiam que somente incitavam ainda mais a minha fome emocional.
Também lembro dos apelidos: baleia assassina, orca… Ah, no passado eles eram só brincadeira, zoeira de criança. Mas não, já era o verdadeiro bullying de hoje, tão temido e rejeitado pelos mais esclarecidos. Pena que os pais e as escolas não tinham esse discernimento nessa época. E tudo isso foi registrado na minha cabecinha de criança.
Passados os anos, começou a onda da dieta. Mal sabia eu que a cobrança ainda ia aumentar (e muito!). De repente, me vi forçada a comer salada, frutas, legumes ou a ficar sujeita a verdadeiros “regimes” muito loucos para ficar “em forma”.
Mas, com todo esse histórico, não bastava querer e pronto. Tinha muito mais por trás! Era uma vida ligada a comida, marcas emocionais profundas, maus hábitos alimentares, cultura de escassez, ausência de memória esportiva… não dava pra implantar aquilo tão facilmente.
Tentava de tudo e não conseguia perder peso. Ou, se conseguia, não mantinha mais que 1 mês. E, após cada frustração, vinha a compulsão, em represália pelo meu “fracasso”.
Aí, de repente, vinha alguém e me dizia que pra emagrecer bastava ter força de vontade, fechar a boca e fazer exercício. Não conseguir isso é preguiça e desleixo.
Essa pessoa mal sabia que estava julgando a vida de outra sem ter o menor conhecimento das suas lutas internas e da sua história se vida. Simplesmente dando sua opinião vazia e “venenosa”.
Aos que acham que a obesidade é questão de falta de força e de “vergonha na cara” desejo duas coisas: cultura e informação. Talvez, saindo da ignorância, esse alguém possa estar apto a ter empatia com quem luta contra essa enfermidade tão complexa.
Só então esse ser humano poderá saber o impacto de tirar de um obeso o combustível emocional que moveu sua vida.
Por Priscila Malveira
fevereiro 2, 2020 @ 7:13 pm
Texto perfeito!!
Parabéns por essa declaração, realmente não é fácil lidar com a obesidade, só quem sofre com este tipo de rejeição, sabe o que é a dor da frustração.